Oi, pessoal. Ontem, vimos na retrospectiva da semana o aumento no preço do arroz. Hoje, vamos ler poemas de Ferreira Gullar e ver que ele, em outro tempo, também trata deste assunto, sabiam?
Roteiro de hoje (dia 26/150):
1) Ler os poemas abaixo, para conhecer o poeta Ferreira Gullar e aumentar seu repertório cultural da moderna poesia brasileira.
Bom trabalho aí!
Não há Vagas
O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem
no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila
seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
— porque o poema,
senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Agosto 1964
Entre lojas de flores
e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo num ônibus
Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho,
a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja.
Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases,
concretismo,
neoconcretismo,
ficções da juventude,
adeus, que a vida
eu compro à vista
aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos,
o verso sufoca,
a poesia agora
responde a inquérito
policial-militar.
Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo.
Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação,
da tortura, do horror,
retiramos algo e com ele
construímos um artefato
um poema
uma bandeira
Meu povo, meu poema
Meu povo
e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema
vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema
está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga
se funde em terra fértil
Ao povo seu poema aqui
devolvo
menos como quem canta
do que planta
Cantiga para não morrer
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Dois e dois: quatro
Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena
como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena
Cantada
Você é mais bonita
que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita
que uma poça d’água
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita
que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707
em pleno ar
Você é mais bonita que
uma refinaria da Petrobras
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana
Olha
você é tão bonita
quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana
Aprendizagem
Do mesmo modo
que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor
se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
Até amanhã! Professora Lou

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